segunda-feira, 23 de abril de 2007

FACULDADE TEOLÓGICA CRISTÃ DO BRASIL – F.T.C.B.
Literatura Cristã Primitiva
Denes Izidro, Professor © 2006[1]

A CARTA DE BARNABÉ[2]

1. Tradição

· O texto de Barn chegou até nós completo através de dois Códices: o Códice Sinaítico, descoberto em 1859, datando do IV século d.C., e o Códice de Jerusalém, descoberto em 1875 e que data do ano 1056.
· Antes de 1859 o texto de Barn era conhecido apenas fragmentariamente por meio de 8/9 manuscritos que remontam a um arquétipo comum que continha Barn a partir de 5.7 anexo a Polic 1.1-9.2.
· Os primeiros escritores cristãos que citam Barn nominalmente são Clemente de Alexandria e Orígenes; e prováveis alusões a Barn também podem ser encontradas em Justino.
· Em Clemente de Alexandria e Orígenes o documento é apresentado como obra de Barnabé, o apóstolo[3] e companheiro de Paulo; Orígenes caracteriza Barn como “carta católica”.
· Sob o nome de Barnabé com autor, a carta chegou a fazer parte do cânon do NT, embora não gozasse da mesma autoridade das cartas paulina; aliás, Eusébio a coloca entre os livros disputados (a)ntilego/mena).

2. Gênero e Recursos Literários

· Sem dúvida Barn não é uma verdadeira carta. Não há um pré-escrito, como é comum nas cartas de fato, como remetente e destinatário.[4] E sua saudação inicial e final se distingue da que é usual em cartas cristãs primitivas.
· Somente percebe-se que quer ser compreendida como uma carta pelas observações de que estaria “escrevendo” a carta.[5]
· No mais, contudo, falta qualquer indício concreto referente a sua própria situação e à dos destinatários, às relações entre escritor e leitor; falta a característica de “correspondência”; e o autor também não se empenha em formular algo nesse sentido.
· Ele escreve um tratado sem ter para isso um motivo contemporâneo e sem limitação a determinado público. Os destinatários são os cristãos em geral. O que o autor lhes quer oferecer, é dito em 1.5: “Esforcei-me em enviar-lhes um breve (escrito), para que, ao lado de sua fé, também adquiram completo conhecimento.” Ele escreve um Tratado sobre a gnose perfeita, que é acompanhada e preside a fé habitual.
· O esquema literário de Barn é o de doutrina-parênese, o qual determina a estrutura de grande parte das cartas do NT.
· Não obstante, Barn faz uma combinação de material de testemunhos e doutrina dos dois caminhos que o faz diferentes dos demais escritos cristãos primitivos.
· Vocabulário e recursos retórico-estilísticos são limitados. Os métodos exegéticos de Barn, que têm sua origem no judaísmo helenista, mas que também revelam pontos de contato com costumes rabínicos e da seita de Qumran, são alegoria e tipologia[6], ocasionalmente também gematria.[7]
· Com isso, mas também por seu objetivo, Barn se encontra em uma ampla tradição exegética; muitas vezes é difícil decidir o que é material da tradição ou idéia do autor.
· As alegorias e tipologias de Barn se tornam muitas vezes – inclusive se comparadas com textos análogos da época – confusas e de mau gosto. O todo é bastante incoerente. O autor é vítima do volume de seu material e não é capaz de coloca-lo numa ordem lógica.

3. Teologia de Barnabé

· Ao colocar desse modo a gnose perfeita acima da pístis, Barn se revela como parente próximo de Hebreus, para a qual igualmente é constitutiva a colocação da “doutrina perfeita” (Barn 6.1) acima dos “princípios elementares” da doutrina, isto é, os objetos do ensino catequético enumerados em 6.1s.
· Objeto da gnose perfeita é em Barn o sentido mais profundo do AT, o qual o autor desvenda por meio de citação e interpretação de inúmeros testemunhos em muitos detalhes (2-17).
· O verdadeiro interesse do autor está no desdobramento da “gnose perfeita”; “Segundo sua natureza, essa gnw/sij está ligada ao AT; é a arte de demonstrar e compilar com base no Pentateuco, na profecia e nos salmos os ensinamentos éticos e soteriológicos da Igreja cristã, as exigências do verdadeiro culto, a doutrina de Cristo e sua obra e nossa expectativa de salvação...O recurso o qual essa gnose trabalha é um método exegético que revela um sentido mais profundo no AT. Quando se tem o AT e quando se tem essa “chave”, então também se tem a gnose”.[8]
· Há um elemento de mistério em Barn. Esse conhecimento perfeito não é acessível a todos os cristãos, mas somente aos “dignos” (9.9); em conformidade com isso, toda a primeira parte (2-17) se revela como discurso de mistérios a iniciados.
· A intenção teológica do autor é mostrar que a Escritura do AT vale exclusivamente para os cristãos. Barn se distingue de todo uso cristão-primitivo do AT fundamentalmente pela negação radical dos judeus. Mas ele se distingue de Marcião pelo fato de não rejeitar o AT,e, sim, o entende como único documento de revelação.[9]

4. Autor, Motivo, Data e Lugar da Redação de Barnabé

· O autor é desconhecido; não menciona seu nome e também não indica sequer que gostaria de ser considerado o companheiro de Paulo, Barnabé.
· Não sabemos porque justamente esse nome foi escolhido para autenticar de modo apostólico esse escrito; mas as referências sobre a conversão, nas quais ele se junta com um “nós” com os endereçados parece apontar para uma conversão do gentilismo (14.5;16.7); portanto, o autor deve ter sido, como seu público, gentio-cristão. Está entre os “mestres” da igreja cristã primitiva (1.8;4.9).[10]
· De um escrito que ignora totalmente seu ambiente histórico, pode-se deduzir apenas vagos indícios referentes à sua época de redação. Contudo o texto de 16.3s parece ser uma boa referência para datar o escrito: “Além disso, diz por outro lado: “Eis que os que destruíram este templo, eles o construirão (de novo).”Isto está acontecendo (agora). Porque foi destruído pelos inimigos em conseqüência de sua guerra;agora também os próprios servos dos inimigos o reconstruirão.” Como é totalmente improvável que o autor estivesse pensando no “templo espiritual”, na igreja, deve tratar-se aqui de uma alusão à construção do templo dedicado a Júpiter sob Adriano. Neste caso, Barn foi redigido depois de 130 d.C.Mas se Barn de fato já está sendo citado por Justino, teríamos 130-140 d.C. Essa data é bastante aceita para Barn.
· Quanto ao lugar da redação, se propõe muitas vezes Alexandria, por causa do método exegético que lembra Filo; contudo, esse método também era praticado alhures.
· Mas a afirmação de 9.6 de que “todo sírio e árabe, e todos os sacerdotes dos ídolos”, bem como os egípcios seriam circuncidados, pode apontar para o Egito, visto que os sacerdotes egípcios realmente eram circuncidados, enquanto,porém, a afirmação de que todos os sacerdotes gentílicos o teriam sido não confere, sendo que o autor generaliza um costume egípcio. Tal generalização parece possível apenas se o autor conhecesse somente sacerdotes egípcios. A isso acresce o fato de que entre sírios e árabes a circuncisão de modo algum era prática geral, o que excluiria a Síria como lugar da redação.

[1] Denes Izidro é Pastor evangélico e estudioso de Novo Testamento, desenvolvendo pesquisas na área de Bíblia e literatura cristã primitiva canônica e não-canônica. Além disso, é também professor de Língua, Literatura, Contexto e Teologia do NT, e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF).E-mail:prof.denesizidro@ftcb.com.br © todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2]Vielhauer,Phillip.História da literatura cristã primtiva.Academia Cristã: São Paulo; Koester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Paulus: São Paulo;VV.AA.Padres apostólicos.Paulus: São Paulo.
[3] Cf. At.14.14 sobre o termo “apóstolo” sendo aplicado a Barnabé.
[4] Introdução: “Filhos e filhas, eu vos saúdo na paz, em nome do Senhor que nos amou.A fé dos destinatários Grandes e ricos são os decretos de Deus a vosso respeito. Acima de tudo, eu me alegro imensamente pelos vossos espíritos felizes e gloriosos, pois dele recebestes a semente plantada em vós mesmos, a graça do dom espiritual. Por isso, eu me alegro mais na esperança de me salvar, porque verdadeiramente vejo em vós que o Espírito da fonte abundante do Senhor foi derramado sobre vós. Em vosso caso, foi isso que me chamou a atenção ao vê-los, o que eu tanto desejava.”
Conclusão: “Peço-vos com insistência, como uma graça: enquanto o belo vaso ainda está convosco, não negligencieis nada das vossas coisas, mas buscai-as constantemente e cumpri todos os mandamentos, pois eles são dignos. Eis por que me esforcei em vos escrever, segundo minhas possibilidades. Eu vos saúdo, filhos do amor e da paz. Que o Senhor da glória e de toda graça esteja com vosso espírito.”.
[5] “Querendo escrever muitas coisas, não como mestre, mas como convém a quem ama, não deixando perder nada do que possuímos, apliquei-me a escrever, como vosso humilde servidor.”
[6] “Moisés disse: "Não comereis porco, nem águia, nem gavião, nem corvo, nem peixe algum que não tenha escamas". Porque ele tinha em mente três ensinamentos. Por fim, ele diz a eles no Deuteronômio: "Exporei a esse povo as minhas decisões." A proibição de comer não é, portanto, mandamento de Deus, pois Moisés falava simbolicamente. Eis o significado do que ele diz sobre o "porco". Não te ligarás a esses homens que se assemelham aos porcos; isto é, que quando vivem na abundância, se esquecem do Senhor; mas na necessidade reconhecem o Senhor. Assim é o porco: enquanto está comendo, ele não conhece seu dono; mas quando está com fome, ele grunhe e, uma vez tendo comido, volta a se calar. Ele diz: "Também não comerás a águia, nem o gavião, nem o milhafre, nem o corvo." Isto é: não te ligarás, imitando-os, a esses homens que não sabem ganhar o alimento por meio do trabalho e do suor, mas que, em sua injustiça, arrebatam o bem alheio. Andam com ar inocente, mas espionam e observam a quem vão despojar por ambição. Eles são como essas aves, as únicas que não providenciam o alimento por si próprias, mas se empoleiram ociosamente, procurando a ocasião de se alimentar da carne dos outros. São verdadeiros flagelos por sua crueldade. Ele continua: "Não comerás moreia, nem polvo, nem molusco." Isto é: não te assemelharás, ligando-te a esses homens que são radicalmente ímpios e já estão condenados à morte. O mesmo acontece com esses peixes: são os únicos amaldiçoados, que nadam nas profundezas, sem subirem como os outros; permanecem no fundo da terra, habitando o abismo.”
“Também "não comerás a lebre." Por que razão? Isso quer dizer: não serás pederasta, nem imitarás aqueles que são assim. Porque a lebre, a cada ano, multiplica seu ânus. Ela tem tantos orifícios quanto o número de seus anos. Também "não comerás a hiena". Isso quer dizer: não serás nem adúltero, nem homossexual, e não te Assemelharás àqueles que são assim. Por que razão? Porque esse animal muda de sexo todos os anos e torna se ora macho, ora fêmea. EIe odiou também "a doninha". Muito bem! Não serás como aqueles que cometem, como se diz, iniqüidade com a boca por depravação, nem te ligarás a esses depravados que cometem iniqüidade com sua boca. De fato, esse mal se concebe pela boca. Moisés, tendo recebido tríplice ensinamento sobre os alimentos, usou linguagem simbólica. Eles, porém, o entenderam sobre os alimentos materiais, por causa do desejo carnal.”
[7] “Vós, porém, direis: "O povo recebeu a circuncisão como selo." Contudo, todos os sírios, os árabes e todos os sacerdotes dos ídolos também têm a circuncisão. Pertencem também eles à sua aliança? Até os egípcios praticam a circuncisão! Filhos do amor, aprendei mais particularmente estas coisas: Abraão, praticando por primeiro a circuncisão, circuncidava porque o Espírito dirigia profeticamente seu olhar para Jesus, dando-lhe o conhecimento das três letras. Com efeito, ele diz: "E Abraão circuncidou entre os homens de sua casa trezentos e dezoito homens." Qual é, portanto, o conhecimento que lhe foi dado? Notai que ele menciona em primeiro lugar os dezoito e depois, fazendo distinção, os trezentos. Dezoito se escreve: I, que vale dez, e H, que representa oito. Tens aí: IH(sous) = Jesus. E como a cruz em forma de T devia trazer a graça, ele menciona também trezentos (= T). Portanto, ele designa claramente Jesus pelas duas primeiras letras e a cruz pela terceira. Quem depositou em nós o dom do seu ensinamento sabe bem disto: Ninguém recebeu de mim ensinamento mais digno de fé. Sei, porém, que vós sois dignos.”
[8] Windisch,pg.308.In: Vielhauer,Philipp.História da literature cristã primitive.Academia Cristã:São Paulo.pg.630s.
[9] “Além disso, peço- vos insistentemente, eu que sou um e vós e vos amo a todos e a cada um em particular mais do que a .mim mesmo: tomai cuidado para não ficardes como certas- pessoas, que acumulam pecados, dizendo que a Aliança está garantida para nós. Claro que era é nossa. Eles (os judeus) a perderam definitivamente, embora Moisés já a tivesse recebido. De fato, a Escritura diz: "Moisés jejuou na montanha durante quarenta dias e quarenta noites, e depois recebeu do Senhor a Aliança, as tábuas de pedra escritas pelo dedo da mão do Senhor." Eles, porém, a perderam, por se terem voltado para os ídolos. Com efeito, assim disse o Senhor: "Moisés, Moisés, desce depressa, pois teu povo pecou, aqueles que fizeste sair da terra do Egito." Moisés compreendeu, e jogou as duas tábuas de suas mãos. A Aliança deles foi rompida, para que a de Jesus, o Amado, fosse selada em nossos corações pela esperança da fé que nele temos.”
[10] “Quanto a mim, não é como mestre, mas como um de vós, que vos preparei umas poucas coisas. Através delas, vocês se alegrarão nas circunstâncias presentes.”

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