segunda-feira, 23 de abril de 2007

FACULDADE TEOLÓGICA CRISTÃ DO BRASIL – F.T.C.B.
Literatura Cristã Primitiva
Denes Izidro, Professor ©[1]

PAPÍAS DE HIERÁPOLIS[2]
“Exegese dos Ditos do Senhor” [3]

Tradição

· O que veio até nós dos cinco livros de Papías sob o título “Exegese dos Ditos do Senhor” não passa de algumas citações e recensões em Irineu, Eusébio,em autores eclesiásticos posteriores e em coleções de interpretações bíblicas de autores antigos.
· As informações biográficas são ainda mais escassas, e duas de suas testemunhas principais se contradizem em um ponto importante.
· A fragmentariedade de toda a tradição de Papías deu motivo para infinitas discussões, como por exemplo, as notas sobre Marcos e Mateus e falta destas sobre Lucas e João e a relação entre Papías e João, apóstolo. Questões sobre o volume, forma literária e teologia da obra de Papías também foram levantadas.
· Da vida de Papías o que se sabe com certeza é que ele fora bispo da igreja de Hierápolis, na Frigia, amigo de Policarpo e autor da “Exegese dos Ditos do Senhor”. O mais permanece incerto, especialmente dados relacionados à cronologia da vida de Papías.
· Existe um dissenso entre Irineu e Eusébio sobre se Papías fora discípulo do apóstolo João ou não – o primeiro pensa que sim, mas o segundo defende que não.[4] Do ajuizamente desse dissenso depende a cronologia de Papías: Se Papías, conforme Irineu, foi discípulo de João, então pode ter nascido entre 60-70 d.C.; mas se Eusébio estiver certo sobre a negação disso, então ele pode ter nascido cerca de 80 d.C. Quanto ao seu falecimento as datas também oscilam muito. Uma cronologia hipotética para a vida de Papías seria de 70 até 140 d.C.

Caráter Literário da Obra de Papías

A obra de Papias sobre a “Exegese dos Ditos do Senhor”, em cinco volumes, cuja data varia entre 90 e 140 d.C., indica que ele pretendia de fato escrever uma obra literária. Mas que forma literária tinha essa sua “interpretação” em cinco volumes? Estaria Papías acompanhando a literatura exegética do judaísmo palestinense ou a do judaísmo helenista? Ou a dos gregos e romanos? Ou teria ele escrito a primeira obra da literatura exegética patrística? Uma resposta direta não é possível sobre isso.
Inicialmente é preciso perguntar pelo objeto da interpretação de Papías, isto é, pelo que se quer dizer com “os Ditos do Senhor” (logi/a kuriaka/). Esta designa não apenas as palavras, mas também os feitos de Jesus. De acordo com isso se deverá entender os logi/a kuriaka como designação da tradição jesuína em seu todo. Essa terminologia fala, de antemão, contra todas as tentativas de restringir o objeto da interpretação de Pápias aos ditos de Jesus.
É inegável que Papías coloca a tradição oral muito acima da tradição escrita, e que está convencido de poder conseguir, por meio de investigações próprias, mais informações e, sobretudo, informações mais confiáveis sobre Jesus do que isso seria possível por meio de livros.[5] Sem dúvida, Papías também restringe consideravelmente o valor dos Evangelhos, de modo que o objeto de sua “exegese” não pode ter sido um Evangelho-Livro, mas um Evangelho-Oral.
O que quer que seja o que recolheu de matéria de fontes literárias, de nossos Evangelhos e outros registros sobre Jesus, seus cinco livros, “Exegese dos Ditos do Senhor”, não eram um comentário de algum Evangelho do tipo dos posteriores comentários patrísticos, pois não dispunha ainda da autoridade exclusiva da tradição fixada por escrito em relação à tradição oral e um cânon de Evangelhos encerrado (Vielhauer,2005).
O livro de Papías era uma coleção comentada de informações da mais variada procedência sobre ditos e feitos de Jesus e se propunha a rever a tradição jesuína com relação a sua antenticidade e garantir sua compreensão correta por meio de interpretação.
Por causa do estado em que se encontram os fragmentos, não podemos dizer nada sobre o modo como Papías faz exegese e como concebeu sua obra. Não obstante, pode-se deduzir dos fragmentos existentes que Papías não compartilha nem do método de exegese patrístico posterior, nem do da literatura exegética judaica ou greco-romana contemporânea: Na verdade, a “Exegese dos Ditos do Senhor” de Papías não pode ser enquadrada em nenhum dos conhecidos gêneros literários contemporâneos do judaísmo ou do helenismo, ou da literatura patrística, contudo já revela a transição para a literatura cristã propriamente dita.
Segundo Overbeck, “Pápias é indubitavelmente um escritor da Igreja Antiga, conquanto sua obra tinha a destinação universal para o público cristão de seu tempo, com a qual pisamos, em princípio, no mundo da literatura...Ele aparece..como um precursor do eruditismo cristão ou da teologia cristã que, com os recursos de um tratamento literário de um problema eclesiástico de seu tempo, se propõe a estabelecer e ampliar a compreensão segura de seu patrimônio de ditos de Cristo”.[6]

Objetivo e Método de Pápias

· A intenção de Papías é garantir uma tradição jesuína autêntica por meio de interpretação. Esse objetivo de Papías é polêmico, isto é, Anti-herético, mais precisamente anti-gnóstico.
· A “Exegese” de Papías não foi motivada em primeiro lugar pela proliferação da tradição jesuína, mas sim pelo fato de que gnósticos cristãos estavam produzindo novos Evangelhos e apropriando-se de Evangelhos já existentes e assim fazendo propaganda de suas idéias por meio de uma literatura interpretativa volumosa. Lucas já havia sido revisado por Marcião, João era muito usado entre os valentinianos e Basílides escreveu um comentário do Evangelho em 24 livros (H.E.IV.VII.7). É contra literaturas gnósticas como esta que se dirige a obra de Papías.
· Para alcançar o seu objetivo, Papías recorre quase exclusivamente à tradição oral a respeito de Jesus, revisa-a e interpreta-a. Mas também usa documentos literários: 1 Pedro, sob a autoridade de Pedro, a antignóstica I João, o Apocalipse e o EvHb (H.E.III.XXXIX.17);[7] não faz uso das cartas paulinas nem de Lucas e João, devido o prestígio destes escritos entre os hereges. Da tradição jesuína literária reconheceu apenas, fora EvHb, Marcos e Mateus, e isso com cautela e reserva, pois esses também eram usados por hereges.
· Tradição jesuína autêntica é para Papías aquela que, por meio de uma corrente traditiva, remonta ao círculo dos discípulos pessoais de Jesus, ou que pode ser redescoberta nesse círculo. Papías caracteriza esse círculo pela menção de sete nomes do colégio dos doze e por Aristião e o “ancião” João.
· É preciso observar que Papías não consolida essa corrente traditiva por meio de uma sucessão de cargos eclesiásticos e que ele tem que examinar as palavras dos anciãos das quais tomou conhecimento. O critério do que é tradição autêntica e com isso também o critério para a interpretação é, em última análise, questão de gosto subjetivo de Papías (Vielhauer,2005).
· Apesar de certo sucesso, a posição teológica de Papías foi embaraçosa já em seu tempo, se não superada historicamente. Na verdade, seu empenho pelo estabelecimento de correntes traditivas orais ainda repercutiu em Hegésipo e Irineu, no entanto, fortemente modificado. Um elo de ligação objetivo, ainda que não temporal, entre Papías e Irineu é Hegésipo, aproximadamente contemporâneo de Irineu.
· Alguns excertos de fragmentos de Papías são bastante interessantes.[8]

[1] Denes Izidro é Pastor evangélico e estudioso de Novo Testamento, desenvolvendo pesquisas na área de Bíblia e literatura cristã primitiva canônica e não-canônica. Além disso, é também professor de Língua, Literatura, Contexto e Teologia do NT, e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF). © todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2]Vielhauer,Phillip.História da literatura cristã primtiva.Academia Cristã: São Paulo; Koester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Paulus: São Paulo;VV.AA.Padres apostólicos.Paulus: São Paulo.
[3] O bispo Papías de Hierápolis, no início do II século d.C., coletou ditos de Jesus da tradição oral, inclusives lendas e revelações – infelizmente, apenas alguns fragmentos deles estão preservados hoje (Köester,2005).
[4] Inicialmente Eusébio aceitou a afirmação de que Papías teria sido ouvinte do apóstolo João, mais tarde, porém, a contestou energicamente, e o fez com base nas afirmações do próprio Papías: esse não teria ouvido o apóstolo, e, sim, o “ancião” João, e não teria conhecido nenhum apóstolo, mas apenas discípulos de apóstolos (H.E.III.XXXIX.2-7).
[5] H.E.III.XXXIX.3s: “Para ti, não hesitarei em acrescentar às minhas explicações aquilo que outrora ouvi muito bem dos presbíteros, cuja lembrança guardei muito bem, estando seguro de sua verdade. Realmente, não me comprazia - como faz a maioria - com os que falam muito, mas com os que ensinam a verdade. Também não me comprazia com os que recordam mandamentos alheios, mas com os que recordam os mandamentos dados pelo Senhor à fé, nascidos da própria verdade. Se, por acaso, acontecia de chegar algum dos que tinham seguido os presbíteros, eu me informava sobre a palavra dos presbíteros, isto é, o que tinham dito André, Pedro, Filipe, Tomé, Tiago, João, Mateus ou outro discípulo do Senhor. E também o que falam Aristão e João, o presbítero, discípulos do Senhor. Eu não achava que as coisas conhecidas pelos livros pudessem me auxiliar tanto quanto as coisas ouvidas através da palavra viva e permanente”.
[6] Overbeck,Geschichte der Literatur der alten Kirche,In:Vielhauer,Philipp.História da literature cristã primitive.Academia Cristã:São Paulo.pg.790.
[7] “O mesmo escritor utiliza testemunhos tomados da primeira carta de João, e igualmente da de Pedro, e expõe também outro relato de uma mulher acusada de muitos pecados ante o Senhor, que está contido no Evangelho dos Hebreus. Que conste também isto, além do que já havia exposto.”
[8] EXCERTOS DE PAPÍAS: “Fragmentos Citados por Irineu (Adv.Haer. V,33,1-5)
obs.: as palavras de Papias estão em itálico.
Quando também a criação, renovada e liberta, frutificar abundantemente todo tipo de alimento, graças ao orvalho do céu e à fertilidade da terra, da forma como recordam os anciãos que viram João, discípulo do Senhor, ouvindo-o da maneira como o Senhor ensinava a respeito desses tempos:
"Haverá dias em que nascerão vinhas que terão, cada uma, dez mil videiras; cada videira terá dez mil ramos; cada ramo terá mil galhos; cada galho terá dez mil cachos e cada cacho terá dez mil uvas e cada uva espremida renderá vinte e cinco metretes de vinho. E quando um dos santos pegar um dos cachos, o outro cacho gritará: 'pega-me porque sou o melhor e, por meu intermédio, bendize o Senhor'. Da mesma forma, um grão de trigo produzirá dez mil espigas e cada espiga dará dez mil grãos; cada grão dará dez libras de farinha branca e limpa. Também os outros frutos, sementes e ervas produzirão nessa mesma proporção. E todos os animais que se alimentam dos alimentos dessa terra se tornarão pacíficos e viverão em harmonia entre si, submetendo-se aos homens sem qualquer relutância."
Outras fontes: “Judas deixou um triste exemplo de impiedade neste mundo; seu corpo inchou de tal forma que ele não conseguiu passar por um caminho onde uma carruagem facilmente passava, de modo que foi esmagado pela carruagem e suas entranhas se derramaram.
(1) Maria, a mãe do Senhor; (2) Maria, a esposa de Cléofas ou Alfeu, que era mãe de Tiago, bispo e apóstolo, de Simão, de Tadeu e de um dos que se chamavam José; (3) Maria Salomé, esposa de Zebedeu, mãe de João, o evangelista, e Tiago; (4) e Maria Madalena. Estas quatro mulheres são encontradas no Evangelho. Tiago, Judas e José são filhos de uma tia do Senhor. Maria, mãe de Tiago, o menor, e José, esposa de Alfeu, era irmã de Maria, mãe do Senhor, e que João liga a Cléofas; eram irmãs por parte de pai, por parte da família do clã ou por outra ligação qualquer. Maria Salomé é chamada simplesmente por Salomé por causa de seu marido ou de seu vilarejo. Alguns afirmam que ela é a mesma pessoa que Maria de Cléofas, já que teria se casado duas vezes.”

Nenhum comentário: