FACULDADE TEOLÓGICA CRISTÃ DO BRASIL – F.T.C.B.
Literatura Cristã Primitiva
Denes Izidro, Professor ©[1]
AS CARTAS DE CLEMENTE DE ROMA[2]
1. Segunda Carta de Clemente
1.1. Tradição
· Sempre anexo a 1Clem, a Segunda Carta de Clemente ficou preservada apenas em três manuscritos: no códice Alexandrino (A), no qual só temos o texto até 12.5, no códice de Jerusalém (H) e em um manuscrito sírio (S).
· Este escrito é denominado de “Segunda Carta de Clemente” (para Corinto) apenas nas inscriptio em H e S, e pela subscriptio de S; no códice Alexandrino (A) ele não tem título.
· Na tradição tardia da igreja, 2Clem foi relacionada com 1Clem e nestes manuscritos preservados foram copiadas juntas. Acresce-se a isso o fato de que as traduções siríacas do Novo Testamento também transmitiram 1Clem e 2Clem juntos.
· 2Clem deve ter circulado anonimamente no início, e depois por causa de sua popularidade foi atribuído a Clemente de Roma, de modo a quase ser canonizado no Egito e na Síria.
1.2. Autor, Data e Ocasião
· O autor de 2Clem não parece ser o mesmo de 1Clem, uma vez que o estilo e os pensamentos são muito diferentes um do outro.
· A atribuição tradicional do escrito a Clemente de Roma, provável autor de 1Clem, portanto, é precária: 2Clem nada diz sobre o seu autor e nem faz referência a 1Clem. O título “Segundo Clemente” só aparece de fato nos colofões dos manuscritos.
· Além disso, Eusébio afirma que não sabia de nenhum escritor antigo que conhecesse 2Clem: “Digno de nota é o fato de que se diz que existe ainda uma segunda carta de Clemente; mas sabemos que ela não é reconhecida do mesmo modo como a primeira, porque, quanto é do nosso conhecimento, também os antigos não fizeram uso dela”.[3]
· Como 1Clem foi escrita de Roma para Corinto, presumiu-se que 2Clem fora composta em Roma ou em Corinto, senão também em Alexandria. Contudo, os argumentos em favor de qualquer uma destas cidades não são conclusivos. Mas como 2Clem deve sua preservação à ligação com 1Clem, desde cedo, o mais imediato é procurar seu surgimento lá onde essa ligação foi estabelecida, isto é, no Egito[4] ou na Síria (Vielhauer,2005).
· Uma vez que 2Clem parece não conhecer ainda um cânon neotestamentário e assim faz citações de tradições apócrifas[5], admite-se que sua data de composição deve situar-se em meados do II século d.C.
1.3. Identidade Literária, Tese e Valor
· 2Clem não deve é uma carta, pois faltam nele todos os elementos característicos de uma carta: não contém introdução com autor e endereço nem saudações finais.[6]
· É provável, como aceito pela maioria, que esse seja uma homilia ou sermão escrito com o fim de ser lido no culto. Neste caso, o sermão tem o objetivo de exortar os ouvintes a tomarem em consideração a palavra da Escritura, provavelmente lida antes do sermão, o qual não deve ser uma explicação desta (Vielhauer,2005).[7]
· 2Clem se apresenta como um grande sermão sobre arrependimento ou penitencial dirigido a cristãos. Se isso for assim, então temos o mais antigo sermão cristão primitivo preservado, em 2Clem.
· As fontes autoritativas de 2Clem são “a Escritura” e “o Senhor”: 2Clem cita muitos textos do AT, especialmente dos profetas, alguns dos quais também são citados pelos Evangelhos sinópticos.[8] Da tradição evangélica faz uso apenas de ditos do Senhor, os quais ele parece tirar de fontes escritas; na verdade, pode-se demonstrar estreitos contatos destes ditos de 2Clem com Mateus e Lucas, mas não a ponto de concluir de fato seu uso; é provável que esteja fazendo uso de uma coleção escrita de ditos do Senhor (Vielhauer,2005).[9]
· Curiosamente, 2Clem parece não ter conhecimento das epístolas de Paulo (Köester,2005).[10]
· A mais importante característica de 2Clem é o apelo ao arrependimento e a admoestação à prática de boas ações ante a perspectiva do julgamento futuro (Köester,2005).
· É a mais antiga pregação cristã preservada (Vielhauer,2005).
· E dá indícios da organização eclesiástica no II século d.C.
1.4. Conteúdo Esquemático (Vielhauer,2005)
1. A grandeza da salvação em Cristo – 1,2
2. Admoestação para a “contra-recompensa” – 3-8
a) A confissão atual 3,4
b) Êxodo “deste mundo”, o qual é somente hospedagem passageira e estadia de viagem 5,6
c) Realização do compromisso batismal 7,8
3. Polêmica contra dúvida sobre a ressurreição da carne e o juízo final 9-12
4. Admoestação à penitência 13-18
a) Motivação com relação aos não-cristãos 13
b) Motivação com relação à natureza da Igreja 14
c) Motivação com relação ao pregador e ao ouvinte 15
d) Penitência como dever cristão permanente 16-18
5. Admoestação final à penitência, à disposição para o sofrimento e expectativa da glória celestial 19,20.
[1] Denes Izidro é Pastor evangélico e estudioso de Novo Testamento, desenvolvendo pesquisas na área de Bíblia e literatura cristã primitiva canônica e não-canônica. Além disso, é também professor de Língua, Literatura, Contexto e Teologia do NT, e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF). © todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2]Vielhauer,Phillip.História da literatura cristã primtiva.Academia Cristã: São Paulo; Koester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Paulus: São Paulo;VV.AA.Padres apostólicos.Paulus: São Paulo.
[3] H.E.III.38.4.citado IN: Vielhauer, Philipp.História da literature cristã primitiva.Academia Cristã:São Paulo.pg.765.
[4] Köester,Introdução ao novo testamento, vol.2.,pg.255, entende que o escrito de 2Clem é foram produzido no Egito, com fins Anti-gnósticos. Quanto a origem de 2Clem, assim Köester se pronuncia: “Todas essas observações colocam 2Clemente diretamente no contexto de uma comunidade cristã do Egito que procura estabelecer sua própria religiosidade em obediência às palavras de Jesus contra um cristianismo gnóstico predominante nesse país.”op.cit.,pg.255.
[5] XI : “Portanto, sirvamos a Deus com o coração puro, para sermos justos; porém, se não o Servirmos, porque não cremos na promessa de Deus, seremos desgraçados, pois a palavra da profecia diz também: "Desgraçados os indecisos, que duvidam em seu coração e dizem: 'Essas coisas temos ouvido, inclusive nos dias de nossos pais; entretanto, temos aguardado dia após dia e nada temos visto. Estúpidos! Comparem-se a árvores; a uma vinha, por exemplo: primeiro, desprendem-se as folhas, logo sai um broto, depois vem o agraz e, por fim, as uvas maduras. Do mesmo modo meu povo passou por problemas e aflições; porém, depois receberá as coisas boas.””
V: “Portanto, irmãos, renunciemos nossa estadia neste mundo e façamos a vontade d'Aquele que nos chamou; não tenhamos medo de nos apartar deste mundo, pois o Senhor disse: "Sereis como cordeiros no meio de lobos". Porém, Pedro O contestou e disse: "O que ocorre, então, se os lobos devorarem os cordeiros?" E Jesus respondeu a Pedro: "Os cordeiros não precisam ter medo dos lobos depois de mortos. Vós também não deveis temer os que vos matam e nada mais podem fazer. Temei antes Aquele que, depois de tiverdes morrido, tem poder sobre a vossa alma e vosso corpo, para atirá-los na geena de fogo””.
VIII: “Eis o que o Senhor diz no Evangelho: "Se não guardastes o que era pequeno, quem vos dará o que é grande? Pois eu vos digo: o que é fiel no pouco, é fiel também no muito”.
XII: “Deste modo, esperemos o reino de Deus, hora após hora, com amor e justiça, já que não sabemos qual será o dia da aparição de Deus. Eis que o mesmo Senhor, quando certa pessoa lhe perguntou quando viria o seu reino, respondeu: "Quando os dois forem um, quando o que estiver fora for como o que estiver dentro, e o varão for como a mulher, não havendo nem varão, nem mulher”. Pois bem: os dois são um quando dizemos a verdade entre nós e entre dois corpos haverá apenas uma alma, sem divisão. E, ao dizer que o exterior será como o interior, quer dizer isto: o interior é a alma e o exterior é o corpo; portanto, da mesma maneira que aparece o corpo, se manifesta a alma em suas boas obras. E, ao dizer o varão como a mulher, nem varão, nem mulher, significa isto: que um irmão ao ver uma irmã não deveria pensar nela como sendo sua mulher e que uma irmã ao ver um irmão não deveria pensar nele como sendo seu homem. Se fizerdes estas coisas - diz Ele - logo vira o reino de Meu Pai.”” (EvTom 22).
[6] Início de 2Clem: “Irmãos: deveríamos pensar em Jesus Cristo como Deus e Juiz dos vivos e dos mortos. Não deveríamos, ao contrário, pensar em coisas medíocres sobre a salvação pois, quando pensamos em coisas medíocres, esperamos também receber coisas medíocres. Os que escutam que estas coisas são medíocres fazem mal; e nós também fazemos mal não sabendo de onde e por quem e para onde somos chamados, e quantas coisas tem sofrido Jesus Cristo por nossa causa. Que recompensa, pois, Lhe daremos? Ou qual fruto de Seu dom poderá nos ser dado? E quanta misericórdia Lhe devemos! Eis que Ele nos concedeu a luz; nos chamou como um pai chama seus filhos; nos salvou quando estávamos morrendo... Que louvor Lhe rendemos? Ou o que foi pago de recompensa pelas coisas que temos recebido, já que éramos cegos em nosso entendimento; rendíamos culto a paus e pedras, a ouro, prata e bronze, obras humanas; e toda a nossa vida não era outra coisa que a própria morte? Assim, pois, quando estávamos envolvidos nas trevas e oprimidos em nossa visão por esse espesso nevoeiro, recobramos a vista e pusemos de lado, por Sua vontade, a nuvem que nos encobria. Ele teve misericórdia de nós! Em sua compaixão nos salvou, pois nos vira mergulhados no erro e na perdição, quando não tínhamos esperança de salvação, exceto a que vinha d'Ele! Ele nos chamou quando ainda não éramos; e do nosso não ser, quis Ele que fôssemos.”
Final de 2Clem: “Não permitas tampouco que isto perturbe a tua mente: ver os ímpios possuírem riquezas e os servos de Deus sofrerem apertos. Tenhamos fé, irmãos e irmãs! Estamos lutando nas fileiras de um Deus vivo; recebemos treinamento na vida presente para que possamos ser coroados na [vida] futura. Nenhum justo recolheu o fruto rapidamente, mas espera que este chegue. Porque se Deus desse imediatamente a recompensa aos justos, então nosso treinamento seria pago de forma comercial, e não conforme a piedade, porque não seríamos justos em razão da piedade, mas por causa da ganância. E por isso o juízo divino alcança o espírito daquele que não é justo, e o acorrenta.
- Ao único Deus invisível, Pai da verdade, que nos enviou o Salvador e Príncipe da imortalidade, por meio do qual Deus também nos manifestou a verdade e a vida celestial: a Ele seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém.”
[7] 19.1 nos dá maiores detalhes sobre esse sermão: “Portanto, irmãos e irmãs, após ouvir o Deus da verdade, leio-vos uma exortação a fim de que possais prestar atenção às coisas que estão escritas, para que possais salvar-vos a vós mesmos e aos que vivem no meio de vós.”
[8] 2Clem 3.5 = Is.29.13 (Mc.7.6;Mt.15.8); 2Clem 7.6 = Is.66.24b (Mc.9.48); 2Clem 14.1 = Jr.7.11a (Mt.21.13).
[9] Sobre essa provável coleção de ditos do Senhor, assim diz Köester,op.cit.,pg.254: “As palavras de Jesus citadas na carta pressupõem os Evangelhos do Novo Testamento de Mateus e Lucas;elas provavelmente foram extraídas de uma coleção harmonizada de ditos que fora composta com base nesses dois evangelhos.”.
[10] Köester observa que a hipótese de uma origem desse escrito em Corinto não é compatível com esse silenciamento quanto ao corpus paulinum, uma vez que ali as cartas de Paulo eram bem conhecidas. Em contra-partida, indica a hipótese do Egito como provável origem de 2Clem, uma vez que essa explicaria o tal silêncio em relação à Paulo.op.cit.,pg.255.
segunda-feira, 23 de abril de 2007
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