segunda-feira, 23 de abril de 2007

FACULDADE TEOLÓGICA CRISTÃ DO BRASIL – F.T.C.B.
Literatura Cristã Primitiva
Denes Izidro, Professor ©[1]

DIDAQUÊ[2]
DIDAXH

1. Tradição

O Didaquê[3] (Did) foi descoberto em 1873 num códice que datava de 1056 e que continha além desse texto também uma obra de Crisóstomo, o livro de Barn, as duas cartas de Clemente e a correspondência de Inácio de Antioquia. Este texto da Did foi publicado, então, em 1883, por Bryennios e em 1884 A.Harnack, com um impacto acadêmico semelhante às descobertas de Qumrân, em 1947.
Em grego ainda existem os seguintes testemunhos da Did: um pequeno fragmento (Did.1.3b-4a;2.7b-3.2a) está preservado no Papiro Oxyrhyncus 1782 (final do IV); temos também toda a Did incluída no VII livro Das Constituições Apostólicas, contudo bastante parafraseada; um fragmento do artigo sobre os Dois Caminhos (Did.1.1-4.8,sem 1.3b-2.1) encontra-se quase literalmente na Constituição Eclesiástica Apostólica.
Das traduções temos apenas fragmentos de versões em latim, copta, etíope e georgiano.

2. Conteúdo e Estrutura Literária (Vielhauer,2005)

I. Os Dois Caminhos 1-6
1.O Caminho da Vida 1.2-4.14[4]
2.O Caminho da Morte 5
3. Admoestação Final 6[5]
II. Disposições Litúrgicas 7-10
1. Batismo 7[6]
2. Jejum 8.1
3. A oração diária 8.2s
4. Orações eucarísticas 9,10[7]
III. Disposições sobre a atitude perante pregadores itinerantes 11-13[8]
1. Verdadeiros e falsos mestres 11.1s
2. Verdadeiros e falsos apóstolos e profetas 11.3-12
a) Apóstolos. Acolhimento e duração de sua permanência, critério para sua autenticidade 11.3-6.
b) Profetas. Critérios para sua auntenticidade 11.3-5
3. Irmãos itinerantes 12
a) Acolhimento, exame e apoio 12.1s.
b) Condições para seu estabelecimento 12.3-4
4. Estabelecimento de verdadeiros profetas e mestres na comunidade. Obrigação da comunidade de sustentá-los. 13
IV. Disposições sobre a vida da comunidade 14,15
1. Eucaristia dominical. Condições para participação 14
2. Bispos e diáconos 15.1s
3. Dever da exortação e do amor fraternal 15.3s.
V. Apocalipse 16

3. O Problema Crítico do Título

Na tradição manuscrita subsistente o Did aparece com dois títulos:
1. Didaxh\ tw=n dw/deka a)posto/lwn
2. Didaxh\ kuri/ou dia\ tw=n dw/deka a)posto/lwn toi=j e)/qnesin
A maioria dos estudiosos opta pela leitura mais extensa (2), supondo que a mesma tenha sido reduzida, resultando na primeira forma (1). Quanto a isso Harnack conclui dizendo que “O escrito é realmente, conforme o testifica o título, uma exposição dos ensinamentos que provêm de Cristo, destinada aos cristãos gentílicos dados aos cristãos como à e)kklhsi/a, tal como, de acordo com a opinião do autor, os proclamaram e transmitiram os apóstolos”. De acordo com essa compreensão, a Did pertence àquela literatura pseudepigráfica que faz dos (doze) apóstolos os portadores da tradição.
Não obstante, segundo Audet a tendência histórico-traditiva geral se encaminha para a ampliação e não redução. Ele destaca com ênfase que o título extenso (2) é atestado apenas pelo códice Hierosolimitano e pela versão georgiana, enquanto que todos os testemunhos da igreja antiga para a Did conhecem apenas um título mais breve em diferentes formulações (“Doutrina dos Apóstolos” ou “Doutrinas dos Apóstolos”, e sempre sem o “Doze”). Acrescenta ainda que a maioria desses testemunhos é independente um do outro. Além disso, a forma extensa com fins ao esclarecimento mais ampla da obra é mais coerente com as posteriores ampliações. Portanto, a prioridade do título breve (1) deve ser considerada ponto pacífico juntamente com o fato de que ele também não continha o número doze, pois este não se encontra em outros manuscritos (Vielhauer,2005). Então a forma primitiva seria Didaxh\ tw=n a)posto/lwn.
Uma outra pergunta também muito importante é sobre a originalidade o título, isto é, sobre se ele provém do didaquista que com isso quis dar autoridade apostólica ao seu texto ou foi interpolado posteriormente. A resposta deve ser negativa – o título não faz parte do texto original, pois no corpo do Did em parte alguma se afirma a origem apostólica desse escrito, em parte alguma se invoca a autoridade dos apóstolos[9]. Isso não acontece nem mesmo onde isso deveria ser esperado obrigatoriamente, na passagem sobre os verdadeiros e falsos apóstolos (11.3-6), a única passagem no corpo da Did onde os apóstolos são mencionados.[10]
Essa constatação sugere a conclusão de que não apenas o número doze no título, mas inclusive o próprio título Didaxh\ tw=n a)posto/lwn não é do didaquista, mas de um interpolador posterior e que em sua origem, portanto, a obra não reivindicava autoridade apostólica, sendo transformada posteriormente em um pseudepígrafo apostólico. Por gozar de grande aceitação o escrito foi colocado sob a proteção da autoridade apostólica, numa época em que os apóstolos formavam uma autoridade incontestada.[11]
Portanto, é preciso livrar-se da idéia, sugerida pelo falso título, de que o Did pertenceria àquela literatura pseudepígrafa que procura sancionar sua doutrina por meio da ficção da origem apostólica. Originalmente o Did não tinha título e nem pretensões apostólicas, devendo ser entendido a partir dele mesmo (Vielhauer,2005).

4. Gênero Literário e Motivação

O Did é uma Ordem Eclesiástica, isto é, uma Constituição Eclesiástica, e a mais antiga. Corrobora para isso o fato de ele não é uniforme, mas composto de diversas partes oriundas de diversas fontes. O Did representa a tentativa de codificar as regras morais, litúrgicas, de direito eclesiástico e outras ordens que se haviam mostrado úteis e necessárias. Ela está orientada exclusivamente na prática e deixa de lado, com exceção de Did.16, todos os elementos dogmáticos e doutrinários.
Desconhece-se um motivo concreto que tenha levado à codificação dessas regras organizacionais da comunidade cristã primitiva e com isso à criação desse novo gênero cristão. Dificilmente poderia ter sido a resolução de um problema cristão contemporâneo sobre os verdadeiros e falsos apóstolos e profetas; esse resultaria numa obra polemista e não organizacional. Quiçá apenas a necessidade natural de uma jovem igreja de organizar-se quanto às ordenanças e estatutos da igreja de Cristo.

5. Problemas Crítico-Literários e Crítico-Textuais

5.1.Fontes do Didaquê

Quantos às fontes usadas pelo didaquista, constam em primeiro lugar as citações: ordem do batismo 7.1;[12]o Pai-Nosso 8.2[13];as orações da ceia 9s. É discutível até que ponto as regras da comunidade de 11-15 se constituem de citações ou formulações próprias do didaquista.
Sem dúvida, o artigo sobre os Dois Caminhos é uma das fontes do Did, pois ele existiu como unidade independente, uma vez que também aparece no texto de Barn 18-20 e ambos os textos são comprovadamente independentes entre si.
Também o pequeno texto apocalíptico do Did.16.3-8 é, com muita probabilidade, adotado de alguma fonte, visto que seu estilo difere em muito do texto precedente.

5.2. Interpolações Posteriores

· A coleção de ditos de Did 1.3b-2.1 não faz parte da unidade dos Dois Caminhos, como indica sua variação na tradição manuscrita. Contudo, é controvertido se ela foi introduzida pelo didaquista ou por um interpolador posterior; a última hipótese é mais aceita.
· Interpolações em outras partes do texto do Did também tem sido apresentadas por estudiosos.
5.3. Problema Crítico-Textual

· O texto do Did descoberto por Bryennios não é confiável como demonstram as variantes textuais existentes em outros manuscritos. O problema se agrava quando se volta para o fato de que uma restauração crítica do texto não é possível por enquanto, uma vez que não dispomos de material manuscrito comparativo para tal tarefa.
· Pelo menos algumas variantes da tradução copta de Did.10.3-12.1 levaram a reconstrução de um texto seguro de algumas passagens. Mas por outro lado levanta novos problemas pelo fato de intercalar entre 10.7 e 11.1 uma oração de ações de graça pelo “óleo da unção”; teria sido essa oração suprimida do texto de Bryennios ou seria um acréscimo no texto copta e em outras tradições manuscritas?
· O fato é que não dispomos de material suficiente para uma reconstrução textual segura do Did e que se não vierem em nosso socorro novas descobertas, as condições da Did permanecem desconsoladoras e as conclusões históricas hipotéticas.
· É, portanto, muito sério o problema textual do Didaquê!

6. Tempo e Lugar da Redação

· Sobre o tempo da redação, os pontos de contato entre Did e Barn não podem ajudar, uma vez que não dependência literária entre eles, antes os mesmos fazem uso de tradição comum. É sobretudo a constituição da comunidade que dá a impressão de antiguidade: os profetas e mestres que nas comunidades paulinas têm residência fixa, agora são pregadores itinerantes, o que aponta para uma época pós-paulina; o fato de que os judeus sequer são mencionados no Did, não constituindo, portanto, um problema nem exterior nem interior para esta comunidade, aponta para um época na qual eles se tornaram insignificantes, portanto depois de 70 d.C.; também a escatologia da iminência da vinda do Senhor e do fim do mundo também não é enfatizada no Apolicalipse de Did 16.3-8. A datação aproximada com base nesses indícios é de inícios do II século d.C.
· Quanto ao lugar da redação do Did, deixando de lado os elementos dados pela tradição e que, por isso, podem dar informações somente sobre a origem dessa tradição, não, porém, sobre o Did como um todo, e restringindo-nos àqueles traços que o didaquista menciona por razões de seu tempo, é importante observar a informação sobre a falta de água como dificuldade que pode apontar para o lugar de sua redação: um indício contra o Egito, rico em água, como lugar da redação do Did, mas como depositário de sua tradição. Quiçá a Síria seja o lugar de sua redação, embora tudo isso seja incerto (Vielhauer,2005).

[1]Denes Izidro é Pastor evangélico e estudioso de Novo Testamento, desenvolvendo pesquisas na área de Bíblia e literatura cristã primitiva canônica e não-canônica. Além disso, é também professor de Língua, Literatura, Contexto e Teologia do NT, e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF). © todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2]Este texto foi redigido com base quase que exclusiva da magna obra de Vielhauer:Vielhauer,Phillip.História da literatura cristã primtiva.Academia Cristã: São Paulo, com revisão de Denes Izidro;Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Paulus:São Paulo.
[3] A excelente definição sintética de Köester sobre o Didaquê deve ser considerada: “..Didaqué, o mais antigo compêndio subsistente de diretrizes da Igreja cristã, composto em algum momento ao longo do século II, mas incluindo materiais preciosos do século I, muito provavelmente das primeiras igrejas da Síria. Apesar de conhecida pelo nome e frequentemente adotada em instruções posteriores da Igreja cristã, a Didaqué só foi descoberta no Códice Hierosolimitano do século X e publicada em 1883...Ela é uma compilação de vários materiais antigos;..”Köester, Helmut. Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Vol.2.pg.174.
[4] Did.3.5: “5Filho, não seja mentiroso pois a mentira leva ao roubo.”
Did.4.9: “9Não se descuide de seu filho ou filha. Muito pelo contrário, desde a infância instrua-os a temer a Deus.”
[5] Did.6: “1Fique atento para que ninguém o afaste do caminho da instrução, pois quem faz isso ensina coisas que não pertencem a Deus.2Você será perfeito se conseguir carregar todo o jugo do Senhor. Se isso não for possível, faça o que puder. 3A respeito da comida, observe o que puder. Não coma nada do que é sacrificado aos ídolos pois esse culto é destinado a deuses mortos.”
[6] Did.7: “1Quanto ao batismo, faça assim: depois de ditas todas essas coisas, batize em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.2Se você não tiver água corrente, batize em outra água. Se não puder batizar com água fria, faça com água quente.3Na falta de uma ou outra, derrame água três vezes sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. 4Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias.”
[7] Did.9.5: “5Que ninguém coma nem beba da Eucaristia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor pois sobre isso o Senhor disse: "Não dêem as coisas santas aos cães".”
[8] Did.11: “1Se vier alguém até você e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido.2Mas se aquele que ensina é perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, não lhe dê atenção. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justiça e conhecimento do Senhor, você deve acolhê-lo como se fosse o Senhor. 3Já quanto aos apóstolos e profetas, faça conforme o princípio do Evangelho. 4Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor. 5Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta. 6Ao partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta. 7Não ponha à prova nem julgue um profeta que fala tudo sob inspiração, pois todo pecado será perdoado, mas esse não será perdoado. 8Nem todo aquele que fala inspirado é profeta, a não ser que viva como o Senhor. É desse modo que você reconhece o falso e o verdadeiro profeta.9Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa não deve comer dela. Caso contrário, é um falso profeta.10Todo profeta que ensina a verdade mas não pratica o que ensina é um falso profeta. 11Todo profeta comprovado e verdadeiro, que age pelo mistério terreno da Igreja, mas que não ensina a fazer como ele faz não deverá ser julgado por você; ele será julgado por Deus. Assim fizeram também os antigos profetas.12Se alguém disser sob inspiração: "Dê-me dinheiro" ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue.
Did.12: “1Acolha toda aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a esquerda da direita. 2Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entretanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias, se necessário. 3Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe para se sustentar. 4Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudência, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio. 5Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha cuidado com essa gente!”
[9] Contudo, na reprodução da Did pela Constituição Eclesiástica Apostólica a origem apostólica é fortemente acentuada, e isso é feito de tal modo que se põem na boca de cada um dos apóstolos algumas frases de Did 1-4.
[10] Did.11.3-6: “3Já quanto aos apóstolos e profetas, faça conforme o princípio do Evangelho. 4Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor.5Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta. 6Ao partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta.”
[11] Esse tipo de “apostolicização literária” pode ser exemplifica pelos escritos de Hebreus e Barn, onde o endereço “Aos Hebreus”, no primeiro, tem a função de paulinizar o escrito, e o título “Carta de Barnabé” quer “catolicizar” a obra anônima; ambas as edições querem atestar a procedência apostólica a ambos os escritos.
[12] “1Quanto ao batismo, faça assim: depois de ditas todas essas coisas, batize em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.”
[13] “2Não reze como os hipócritas, mas como o Senhor ordenou em seu Evangelho. Reze assim: "Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão-nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai nossa dívida, assim como também perdoamos os nossos devedores e não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal porque teu é o poder e a glória para sempre".3Rezem assim três vezes ao dia.”

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